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Um dia a onda será

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Há alguns anos, no tempo da guerra,  desembarquei em Luanda. Literalmente desembarquei. Acostado no porto de Luanda – carregado de carros em segunda, terceira ou quarta mão, muitos deles surripiados nas ruas das cidades ricas da velha Europa,  deixei o  Funchal, para rever as encostas avermelhadas das barrocas, a visita de saudade ao cemitério do Alto das Cruzes, à Vila Alice,  olhar a língua de areia que se estende na Ilha do Cabo e lá, mais adiante, o Mussulo, que é ilha sem o ser, conforme o andamento do relógio das marés. Pelo caminho, o velho imbondeiro, de múcua ácida, tão branca como campos de algodão.


Helder Castro


Levava no saco da viagem algumas coisas boas para amaciar as agruras de uma guerra que estava distante da capital, mas que se fazia presente no quotidiano feito de escassez de alimentos, de falta de energia, de pobreza e tristeza que deambulava pelas ruas da baixa nos corpos estropiados por minas, nos rostos precocemente envelhecidos das meninas que vendiam o corpo aos senhores da guerra.

Revi alguns bons amigos, dos antigos, dos que sobreviveram à purga que não poupou afetos e desafetos dos que nesses dias trágicos se consolidaram no poder e responderam com sanha vingativa aos que se aventuraram numa tentativa que, muito antes de a concretizarem, se anunciava ingenuamente, ou não, nos apartamentos e nos comités em que  era tecida e urdida e que também não pressagiava nada de bom para o futuro do povo que vislumbrava, então, manhãs de liberdade.

Era domingo e havia almoço no Mussulo. O grupo era numeroso. Alguns ministros, outros ex-ministros, outros nem uma coisa nem outra, outros que integravam o pelotão daqueles que tudo dão sem nada receberem. Alguns deram a vida que, como se sabe, não é pouca coisa, não senhor.

No hotel em que fui hospedado pela revista para a qual escrevia, à saída do porto, de porte vistoso mas lençóis franceses encardidos e de cardápio reduzido a lagostinhas e frango de churrasco, o que, confesso, me deliciou durante dois ou três dias, mas me fartou rapidamente, esqueci, entre outras coisas, as duas garrafas de whisky novo, daquele de oito anos, que tinha guardado para partilhar com os amigos com que me iria encontrar.

Enquanto a pequena lancha cruzava as águas e ultrapassava o já então velhinho Kapsoka, que permanece na memória de uma infância feliz, lembrei-me que tinha esquecido no hotel as garrafas tão cuidadosamente guardadas dos olhares de marinheiros – havia também uma jovem marinheira, estagiária de máquinas – sempre sequiosos nas travessias atlânticas.

Caminhando em direção à casa ampla, à beira-mar plantada, onde talvez duas dezenas de camaradas, todos camaradas, alguns amigos de outros tempos, anteriores à libertação, outros nem tanto,  esbaldavam alegria, soltando as risadas únicas das gentes de Luanda, deparei-me com um banquete onde não faltavam o leitão à bairrada, ou seria à mussulo?, lagostas fresquíssimas, garoupinhas ali mesmo pescadas, vinhos portugueses e whiskies com “pedigree” com os quais não estava a habituado a conviver, exceto quando algum diretor me enviava, raramente, em representação, a alguma festa de embaixada, das mais ricas, em bairro nobre da velha Lisboa.

Ali, no Mussulo, a guerra, que se prolongaria ainda por mais alguns anos, não se fazia ouvir. Muitos dos que nesse domingo cantavam hinos à vida nas areias ardentes do Mussulo já nos deixaram. Outros, alguns, poucos, são hoje notícia nas páginas de jornais e sites, protagonistas dos escândalos de corrupção em que mergulharam o país e que se vão desnudando numa onda que não se sabe ainda se vai lavar as terras avermelhadas ou se morrerá, lentamente, numa marolinha inconsequente, lambendo os areais da cidade grande.

Seja como for, a onda abre nesgas de esperança aos que um dia lutaram, nas matas e fora delas, por uma Angola mais justa. Um dia será.


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Escrito por: África 21 Digital

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