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O Imbondeiro: Pequenos e grandes malandros

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Boas notícias deste lado do Atlântico são cada vez mais raras. Sempre que encontro alguma, é certo que a coloco em destaque, na primeira página do jornal online. Muitas vezes em manchete, não tanto pela importância noticiosa intrínseca, o que seria tecnicamente correto, mas mais pela raridade da informação.


Helder Castro


Há alguns anos, havia um jornal impresso em Portugal (talvez ainda sobreviva), que ostentava o título O Crime, a vermelho, nos escaparates dos quiosques e tabacarias. Dizia-se então que se se torcesse a folha, não sei bem quantas seriam, escorreria sangue. O género aumentou e conquistou espaço e tempo na mídia, com aparente bom proveito para os acionistas. Ontem, como hoje, suponho que quem comprava o dito jornal sabia o que estava a levar. Pelo menos não era enganado no título.

Do lado de cá do mar, o Brasil foi transformado num imenso cenário de crimes. De norte a sul, de leste a oeste. Não que o imenso país seja uma nação de criminosos, mas, convenhamos, a apetência pela atividade delituosa cresceu, aumentou, alastrou, por obra de braços tentaculares de polvos que se fazem presentes um pouco por todo o lado, nos mais diversos níveis de atividade.

O famoso “jogo do bicho” parece coisa do passado. E não é. Mas a relevância do tratamento jornalístico, que lhe era dado há duas ou três décadas cedeu espaço, perdeu visibilidade, para outras atividades provavelmente mais lucrativas e, aparentemente, não sanguinárias

Hoje, o grande crime ganhou foros de conhecimento superior. Nas ruas, os seus peões – que atuam nos mais diversos ramos, do tráfico de drogas ao de armas pesadas,  do tráfico de influência na administração pública à venda de lugares nas empresas estatais, nas mais diversas instituições, públicas e privadas, e nos partidos políticos – confrontam-se, entre si, em busca de espaço. Nos gabinetes, os manda-chuvas, de colarinho branco e bmw estacionado na gararegm da Paulista, sussurram ordens, articulam conchavos e conferem rigorosamente os saldos das gordas contas que mantêm em paraísos fiscais

No andar de baixo, trabalha-se com afinco. Alguns acham que o bmw do patrão, o mercedes da mulher do patrão, o jaguar cinza da filha do doutor e a mansão na Augusta são o corolário de dias de trabalho e noites sem sono; outros, que têm a pulga atrás da orelha sobre a proveniência das fortunas, preferem guardar as suas dúvidas sob o manto do silêncio; e outros, em menor número, atentos aos relatórios dos resultados do conglomerado empresarial, esperam, pacientemente, que, algum acaso, desvende os milagres bilionários.  Afinal, em comum, todos sustentam com o seu trabalho e o seu silêncio a frota de carros da família do patrão.

Na última semana, o Ministério Público Federal deu a conhecer a denúncia que fez contra uma organização criminosa que operava nos gabinetes e nos corredores do Tribunal de Justiça da Bahia. Esta seria apenas mais uma de muitas denúncias de corrupção que, com frequência quase diária, chegam aos noticiários. No entanto, ela tem algo que a diferencia um pouco. E o que a separa das muitas outras é a “qualidade” dos seus integrantes.

Desta vez, não se trata do Malvadeza, nem do Chico Mãozinhas, nem da Gata das Docas, figuras conhecidas do noticiário do crime nas ruelas da capital baiana. Personagens que poderiam ter feito parte do universo de grandes heróis e pequenos malandros, que povoam as histórias de profundo humanismo que  Jorge Amado nos deixou.

As figuras que se fizeram presentes, nos últimos dias, nos noticiários não fazem parte desse acervo do escritor imortal que encheu a minha juventude de ideais e me transportou para terras brasileiras muito antes de nelas ter pisado.  Estes são figurões de alto coturno que desfilaram, durante anos, poder e prepotência, luxos e riquezas pelas ruas de Salvador.

Com maiores ou menores detalhes, jornais e noticiários televisivos informaram, no último dia 10, que três desembargadores e outras 11 pessoas, incluindo três juízes, foram denunciados, no âmbito da Operação Faroeste – o nome dado pelos investigadores à operação já revela o ambiente de “quero, posso e mando” que caracteriza os integrantes do suposto bando criminoso.

A operação do Ministério Público e das autoridades policiais coloca a nu um esquema milionário de venda de sentenças para legitimar a grilagem de terras no oeste da Bahia, ou seja, por meio da produção e autenticação de documentos falsos de propriedade. Segundo a denúncia, foram lavados mais de R$ 517 milhões, com o pagamento de altas somas em espécie.

Segundo os autos, o esquema, que teria funcionado entre 2013 e 2019, incluiu a transformação de um borracheiro [oficinas para remendar pneus, frequentemente instaladas à beira das estradas] num dos maiores latifundiários do estado da Bahia, região nordeste do Brasil, com um patrimônio de 366 mil hectares de terras e cifras que superam R$ 1 bilhão, em valores atualizados.  Advogados seriam os responsáveis por intermediar a negociação entre os magistrados e o idealizador do esquema, que se apresentava na sociedade baiana como cônsul de Guiné-Bissau.

Vê o estimado leitor como funciona o esquema de enriquecimento? É barato e dá milhões, mas é criminoso. No entanto, uma ou duas gerações depois do sucedido , lavados que estejam os muitos milhões obtidos criminosamente, é de supor que, mantendo-se o mundo como ele é hoje – espero que não, espero que não – , os diamantes poderão voltar a desfilar, em belos adornos, nos salões frequentados pelos donos disto tudo. Ou será que estou equivocado?


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Escrito por: África 21 Digital

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