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Viriato da Cruz: o poeta e o político, por José Carlos Venâncio

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Viriato da Cruz , poeta mestiço, nascido em Porto Amboim,  foi,  na verdade, quem levou  mais longe a componente modernista da literatura angolana.


Timothy Brennan (1989), num ensaio que começou por ser sobre escritores do chamado Terceiro Mundo que tinham granjeado projeção internacional, designados por “Third World Cosmopolitans” (p. VIII), e que depois acabou por ser fundamentalmente sobre a obra de Salman Rushdie, escreve, seguindo uma tradição temática da literatura ocidental do pós-guerra (entenda-se II Guerra Mundial), que a
divisão entre exílio e nacionalismo não é apenas uma divisão entre indivíduo e grupo, mas sim entre perdedores e ganhadores, entre “um estado de espírito de rejeição e um estado de espírito de celebração”.

Embora não partilhe completamente desta opinião, sobretudo quando os termos de comparação são tão absolutizados, não posso negar a sua pertinência metafórica na apreciação da poesia e do percurso político do poeta angolano Viriato da Cruz, a grande referência do Modernismo angolano e uma das vozes maiores da lírica em língua portuguesa, conquanto a sua obra poética (pelo menos a conhecida) não seja assim tão vasta. Se como poeta foi longe e, como tal, foi um vencedor, como político, como adiante se verá, foi “aparentemente” um derrotado. Morreu em 1973, no exílio, na China de Mao-Tsé-Tung, angustiado e sequestrado pelas autoridades chinesas.

O homem e o poeta

Viriato da Cruz , poeta mestiço, nascido em Porto Amboim, foi, na verdade, quem levou mais longe a componente modernista da literatura angolana. O seu nome, no âmbito da história da poesia angolana, é referenciado como pertencendo à Geração de 50, uma geração de poetas e intelectuais com fortes motivações nacionalistas, cuja ação se começou a sentir em finais dos anos 40 com a criação, ou talvez melhor, o aparecimento (na medida em que foi um movimento mais informal do que formal) do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, de que fizeram parte, além de Viriato da Cruz, Agostinho Neto, o primeiro presidente da República de Angola, António Jacinto, António Cardoso, Tomás Jorge e aquele que escreveu os versos mais marcantes (no que respeita à sua origem) do movimento e, no fim, do Modernismo angolano, Maurício de Almeida Gomes. Os versos a que me refiro fazem parte do poema “Exortação”, onde, glosando dois poetas do Modernismo brasileiro…

,

“Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,  

Poetas do Brasil,  

Do Brasil, nosso irmão,   

Disseram:  

“ – É preciso criar a poesia brasileira,  

De versos quentes, fortes, como o Brasil,  

Sem macaquear a literatura lusíada”.  

  exorta os angolanos a   

  (…) ”forjar a poesia de Angola!  

…  

Uma poesia nossa, nossa, nossa, nossa!   

– cântico, reza, salmo, sinfonia,   

              que uma vez cantada,  

              rezada  

              faça toda a gente sentir,  

              faça toda a gente dizer:  

                 – É poesia de Angola!” 

 

Este grupo de poetas e intelectuais tem no Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola um importante centro aglutinador, mormente em torno da revista Mensagem – a Voz dos Naturais de Angola, pensada como expressão de uma estética que incorporasse os ritmos e as expetativas das gentes locais. Dela, apenas saíram dois números; porém, o seu impacto foi de tal monta que, não raras vezes, o grupo é referido pela crítica e história literárias como a Geração da Mensagem, substituindo a designação anteriormente indicada, ou seja, a de Geração de 50.

Em finais da década, uma outra publicação angolana dará voz a esta geração. Trata-se da revista Cultura (II), órgão da Sociedade Cultural Angolana. Entre os que participam nesta revista, José Luandino Vieira foi o escritor que maior prestígio granjeou, sendo, ainda hoje, uma das maiores referências da literatura angolana e da literatura em língua portuguesa, em geral. Cultura (II) continua a tónica modernista que vinha de trás, conquanto comece a incorporar elementos negritudinistas veiculados por correligionários que, entretanto, viviam em Lisboa.

Nesta cidade, então a capital do império colonial, o ensaísta angolano Mário Pinto de Andrade e o académico santomense Francisco José Tenreiro publicam, em 1953, o Caderno de poesia negra de expressão portuguesa, inspirados na “Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgaxe” (Antologia da Nova Poesia Negra e Malgaxe, Paris 1948), organizada por Léopold Sédar Senghor. Também em Lisboa tem início em 1958 a publicação do Boletim da Casa dos Estudantes do Império, órgão onde publicaram estudantes das várias colónias, entre os quais angolanos, pertencentes à Geração de 50.

A força do makèzú

Como anteriormente mencionei, não sendo a obra poética de Viriato da Cruz vasta, ela é, quanto à temática e, sobretudo, quanto à forma e ao estilo, profunda e inovadora. O recurso a localismos vocabulares e sintáticos, a aliterações, onomatopeias, muito na linha dos poetas brasileiros, confere uma autenticidade ímpar ao seu discurso, construído, na apreciação de Francisco Soares (2008: 83), de arquétipos enunciativos herdados da narrativa oral africana moldados ao “quotidiano popular de uma cidade colonial”. Em poemas como “Makèzú” constam versos como:

 

“— «Kuakié!… Makèzú, Makèzú…»    

O pregão da avó Ximinha 
É mesmo como os seus panos, Já não tem a cor berrante 
Que tinha nos outros anos.   

Avó Xima está velhinha Mas de manhã, manhãzinha, Pede licença ao reumático 
E num passo nada prático Rasga estradinhas na areia…”  

Estes versos são exemplo dessa autenticidade estilística, desse olhar émico sobre a mundividência de personagens que se exprimem e, supostamente, pensam em kimbundu ou num português com interferências dessa língua. Crítico de uma modernidade que, viabilizada
pelo capitalismo e pelo colonialismo, foi discriminatória e, sobretudo, despersonalizante, é igualmente crítico, embora com complacência, das personagens que se entregaram a essa “civrização” e que, supostamente “civilizados”, deixaram de comprar à “avó Ximinha”, uma vendedora de rua (Kitandeira), o màkezú que ela apregoa pelos caminhos que levam à cidade de asfalto, a cidade dos europeus. Eis os
versos que assim rezam:

 

No cruzeiro dos caminhos 
Das gentes que vão p’ra Baixa.   

Nem criados, nem pedreiros Nem alegres lavadeiras Dessa nova geração 
Das «venidas de alcatrão» Ouvem o fraco pregão   

Da velhinha quitandeira.   

— «Kuakié!… Makèzú, Makèzú…» — «Antão, véia, hoje nada?» 
— «Nada, mano Filisberto… 
Hoje os tempo tá mudado…»   

— «Mas tá passá gente perto… Como é aqui tás fazendo isso?»   

— «Não sabe?! Todo esse povo Pegô um costume novo 
Qui diz quê civrização: 
Come só pão com chouriço   

Ou toma café com pão…  

Dispondo de igual propriedade telúrica, enaltecendo comportamentos e costumes da terra, hoje certamente reprováveis à luz da problemática social em torno da igualdade de género, mas sobre cujo comportamento o narrador, na sua complacência, não deixou de ser igualmente crítico, é o poema “Só Santo”:

 

“Lá vai o sô Santo… 
Bengala na mão 
Grande corrente de ouro, que sai da lapela Ao bolso… que não tem um tostão.   

Quando o sô Santo passa 
Gente e mais gente vem à janela: — «Bom dia, padrinho…» 
— «Olá…» 
— «Beçá cumpadre…» 
— «Como está?…» 
— «Bom-om di-ia sô Saaanto!…» — «Olá, Povo!…»  

Mas porque é saudado em coro? Porque tem muitos afilhados?

Porque tem corrente de ouro a enfeitar sua pobreza?… Não me responde, avó Naxa?

— «Sô Santo teve riqueza…

Dono de musseques e mais musseques… Padrinho de moleques e mais moleques… Macho de amantes e mais amantes, Beça-nganas bonitas. Que cantam pelas rebitas:

«Muari-ngana Santo   

dim-dom 
ual’o banda ó calaçala   

dim-dom   

chaluto mu muzumbo  

 dim-dom…”.

Dos poemas que foram musicados, um granjeou alcançar grande notoriedade no espaço de língua portuguesa, mormente em Portugal. Trata-se do poema “Namoro”, que foi musicado e cantado por cantores e grupos musicais portugueses, além dos angolanos. O poema é a prova de como uma escrita simples, conquanto localizada, pôde transcender os limites do contexto cultural da sua produção e caminhar para uma fruição universal. Baseia-se em abstrações sensoriais construídas a partir das propriedades de “coisas” do quotidiano luandense, mormente dos subúrbios, tais como o maboque (fruto acre-doce), as “laranjas do (rio) Loge” (famosas pela doçura) ou a sumaúma (com que se enchiam os colchões pela sua maciez) para descrever a mulher que ama.

São imagens telúricas de uma grande riqueza semântica, dando conta das suas capacidades líricas e discursivas. Acresce a esses recursos estilísticos o uso do gerúndio como indicativo de localização, o que, em si, pode ser entendido como uma influência da poesia brasileira, pois, diferentemente do que acontece com o português europeu, onde o emprego do gerúndio tende a ser evitado, na variante brasileira da língua portuguesa não existem tais limitações normativas. Seguem-se, a título exemplificativo, alguns dos excertos do poema:

 

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado 
e com letra bonita eu disse ela tinha 
um sorrir luminoso tão quente e gaiato 
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas  

espalhando diamantes na fímbria do mar 
e dando calor ao sumo das mangas 
Sua pele macia — era sumaúma… 
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas  

Sua pele macia — era sumaúma… 
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e tão doce — como o maboque…   

Seus seios, laranjas — laranjas do Loge seus dentes:.. — marfim…   

Mandei-lhe essa carta e ela disse que não.   

…….

Para me distrair  

levaram-me ao baile do sô Januário  

mas ela lá estava num canto a rir  

 contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário  

Tocaram uma rumba – dancei com ela  

e num passo maluco voámos na sala  

qual uma estrela riscando o céu!  

E a malta gritou: “Aí Benjamim!”  

Olhei-a nos olhos – sorriu para mim  

pedi-lhe um beijo – e ela disse que sim.  

 

Do modernismo ao nacionalismo

Na sequência do que tenho vindo a descrever, o Modernismo não desempenhou, em exclusivo, o papel de consciencialização literária em Angola. Outras correntes contribuíram para esse processo. Uma dessas correntes, quiçá a mais importante, foi a do Pan-africanismo e outra ainda, com menor peso e mais tardia, a da Negritude, para alguns a versão cultural do Pan-africanismo.

O poema “Mamã negra (Canto de esperança)”, dedicado à memória do poeta haitiano Jacques Roumain, pela primeira vez publicado no já referido Caderno de poesia negra de expressão portuguesa, é exemplo do compromisso do poeta com essa corrente de pensamento, aproximando-se, desta feita, daquele que será, porventura, o poeta angolano mais representativo do Pan-africanismo (e não tanto da Negritude), Agostinho Neto, que veio a ser o primeiro presidente da República Popular de Angola. A título exemplificativo, transcrevem-se, de seguida, alguns excertos do poema “Mamã negra”:

 

Tua presença, minha Mãe — drama vivo duma Raça drama de carne e sangue 
que a Vida escreveu com a pena de séculos.   

Pela tua voz   

Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais [dos seringais dos algodoais…   

Vozes das plantações da Virgínia dos campos das Carolinas Alabama   

Cuba Brasil…   

Vozes dos engenhos dos banguês das tongas 
[dos eitos das pampas das usinas   

Vozes do Harlem District South   

vozes das sanzalas Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi (…).

 

O nascimento do MPLA

A consciencialização literária na África de língua portuguesa antecedeu a consciencialização política e, por via desta, o nacionalismo. Esta sequência processual foi particularmente significativa em Angola. Já me referi ao facto de a Geração de 50 se ter repartido, a dada altura, entre o grupo de estudantes residentes na metrópole e o dos que permaneceram em Luanda. Estiveram ambos na origem do MPLA, conquanto o tenham integrado por via de filiações políticas diferentes.

Viriato da Cruz começou por ser um dos fundadores do Partido Comunista Angolano (PCA), ato em que foi acompanhado por Mário António (Fernandes de Oliveira), António Jacinto e Ilídio Machado. Terão sido influenciados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) , a partir de cujos estatutos e programa elaboraram os textos angolanos correspondentes. Essa foi a razão invocada pelos comunistas portugueses, reunidos (clandestinamente) no V Congresso em 1957, para recusar o apadrinhamento solicitado pelo PCA, resolução transmitida a Lúcio Lara, participante no congresso e incumbido por Viriato da Cruz em obter o almejado apadrinhamento (Mabeko-Tali 2018: 161).

De notar, a este propósito, dois aspetos que me parecem relevantes para a argumentação que tenho vindo a desenvolver: o primeiro tem a ver com o facto de ter sido nesse congresso que o PCP passou a reconhecer o direito à independência dos povos das colónias; o segundo diz respeito à difícil relação do PCP com os nacionalistas angolanos, mormente com os que se encontravam agregados à volta do MPLA, não obstante membros deste movimento perfilharem, como o PCP, o marxismo-leninismo. As relações entre as duas organizações foram sempre “sobressaltadas” e, desta feita, parece que o “sobressalto” se ficou a dever ao facto de o PCP já dispor em Angola de representantes entre os europeus aí residentes. Não foi, por conseguinte, uma animosidade especificamente dirigida a Viriato da Cruz, na altura já identificado com uma linha política mais consentânea com o maoísmo e a experiência chinesa do que com o sovietismo.

Não tendo o PCA conseguido implantação significativa no terreno, os seus promotores transformaram-no no PLUAA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola) (Rocha, 2008: p. 126), que, não tendo igualmente obtido grande recetividade junto da população, pôde, de qualquer modo, lançar a 10 de dezembro de 1956 o chamado ‘Manifesto 56’, que veio a constituir um marco importante do movimento anticolonial em Angola. Contribuiu, nomeadamente, para o estabelecimento do marxismo como uma das correntes ideológicas do nacionalismo angolano, com desempenho estruturante junto do MPLA, o movimento herdeiro do PLUAA e de outras pequenas organizações, como o MLA (Movimento de Libertação de Angola), o MIA (Movimento pela Independência de Angola) e o MAC (Movimento Anticolonialista de Angola).

Sobre a origem do MPLA, existe uma extensa bibliografia (Pacheco 1997; Rocha 2008…), divergente entre si quanto a processos e datas e que, não sendo propriamente útil ao quadro argumentativo do presente subcapítulo, me limito a enunciá-la.

Viriato da Cruz abandona Angola em 1957 e junta-se a outros angolanos a residirem na Europa, mormente em Paris, como é o caso de Mário Pinto de Andrade.

Entretanto, o MPLA é fundado em 1960, em Tunes, capital da Tunísia (Rocha 2008: 159). O seu Comité-Diretor instala-se posteriormente na Guiné-Conacry, na África ocidental, e procede à reestruturação das suas chefias, tendo sido Mário Pinto de Andrade escolhido para presidente e Viriato da Cruz para secretário-geral. Num propósito de aproximação geográfica a Angola, a sede do movimento é posteriormente transferida para o Congo-Léopoldville, hoje República Democrática do Congo, onde o movimento de libertação rival, a UPA (União dos Povos de Angola), já se encontrava sedeado. Com a posterior chegada de Agostinho Neto ao Congo-Léopoldville, Mário Pinto de Andrade cede-lhe a presidência. Várias razões têm sido invocadas para a explicação desse ato.

A aura política que Neto, entretanto, granjeara, quer junto dos militantes (o primeiro Comité-Diretor, saído de Tunes, designara-o presidente
honorário do movimento), quer no plano internacional é seguramente uma das razões. O facto de Mário de Andrade e Viriato da Cruz serem mestiços e essa situação constituir um obstáculo à legitimação do movimento junto dos líderes nacionalistas africanos é outra das razões, circunstância persistentemente invocada pela UPA (União dos Povos de Angola) , nomeadamente pelo seu líder, Holden Roberto, junto dos poderes instituídos na África recentemente independente. E, ao que parece, esta postura terá sido normalizada pelo próprio Viriato da Cruz que, na reunião do Comité-Diretor, ocorrida de 13 a 26 de maio de 1962 em Léopoldville, disse, como consta da ata, que “um Comité Director formado por mulatos não poderá dar palavra de ordem que seja aceite [pelos negros] (Rocha 2008: 161).

A assunção de tal posição estará, aliás, na base da sua cisão em relação à liderança de Neto e da sua posterior adesão à UPA à revelia do que havia sido estabelecido na 1ª Conferência Nacional do MPLA (10.12.1962), de não haver nem união, nem dissolução do MPLA a favor de uma
integração individual dos seus membros na UPA, como haviam proposto os dirigentes desta organização.

O calvário chinês

Viriato da Cruz esteve pouco tempo na UPA. Abandonou-a por previsíveis incompatibilidades e aceitou a oferta das autoridades chinesas para aquele que, em princípio, seria um exílio dourado; dourado, porque desde cedo Viriato da Cruz manifestara simpatias pelo regime chinês e pelo maoísmo. Porém, não foi esse o desfecho da sua estadia na China, onde, a dada altura, ele e a sua família (mulher e filha) foram colocados sob um sequestro angustiante.

Moisés Silva Fernandes (2008), a quem se deve uma investigação exaustiva sobre a matéria, aponta como uma das possíveis causas da atitude chinesa a crítica que Viriato formulara à abertura diplomática do regime de Mao Tsé-Tung aos Estados Unidos da América. É uma
explicação plausível dada a irreverência e a rigidez ideológica de Viriato. Ela não deve, contudo, subestimar a radicalização do próprio regime com a chamada Revolução Cultural, a soldo da qual se cometeram as mais horríveis tropelias no que concerne aos direitos humanos. Aliás, Viriato, com medo de represálias, terá destruído textos seus de análise e doutrina política que em muito contribuiriam para um conhecimento mais exaustivo da revolução chinesa, do nacionalismo africano, da luta de libertação angolana e do seu próprio pensamento político e estratégico. Exílio angustiante com um desfecho triste: Viriato acabou por morrer em junho de 1973 num hospital chinês.

Agostinho Neto, que de rival passou a inimigo político, não esteve completamente isento de culpa neste desenrolar de acontecimentos. Aquando da já referida 1ª Conferência Nacional do MPLA, recusou que Viriato integrasse a única lista para os órgãos do movimento. “Ou ele ou eu”, terá dito (Rocha 2008: 165). Seguiu-se a já referida rutura de Viriato com o MPLA e o assassinato de dois dos seus seguidores: Rodrigues Miguéis e José Miguel.

Para além das diferenças de pensamento e de estratégia política entre Neto e Viriato, outras razões têm sido elencadas para a explicação do diferendo. Mabeko-Tali (2018: 158 e segs.) invoca, a propósito, a diferença de personalidades entre os dois líderes e a particularidade de Neto ter podido formar-se em medicina e Viriato não ter tido o privilégio de tirar um curso superior por falta, designadamente, do apoio paterno para o efeito. Tal impossibilidade terá gerado nele um sentimento de frustração que terá perturbado a relação entre os dois. Acrescente-se a estas razões a já referida circunstância de um ser negro e o outro mestiço, desfavorecendo Viriato perante a idiossincrasia reinante no movimento anticolonial em África, onde reinava um “racismo antiracista”, para glosar uma expressão de Jean-Paul Sartre em “Orphée Noir”.

Retomando o repto lançado por Timothy Brennan, Viriato, no diferendo em apreço, foi, supostamente, o perdedor e Agostinho Neto, o vencedor. Se este desfecho é válido no plano político, o certo é que a sua obra literária, em termos nacionais, esteve proscrita ou, talvez melhor, privada de reconhecimento oficial praticamente até 2018, altura em que lhe foi definitivamente atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes, na modalidade de literatura; definitivamente, porque a atribuição do mesmo, numa edição anterior, acabara por ser revertida. Como sempre acontece, a (boa) arte transporta consigo o dom da universalidade, e, assim sendo, após a atribuição do prémio, Viriato da Cruz parece estar definitivamente de volta ao mundo das letras angolanas… não ao da literatura universal, porque desse, na verdade, nunca partiu.

 

José Carlos Venâncio é professor catedrático aposentado da Universidade da Beira Interior e investigador do CECS – Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Este texto é parte integrante do livro Uma presença subtil. O Brasil e os modernismos africanos, a ser publicado pela Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana (Recife).

 

 

 BIBLIOGRAFIA  

 

BRENNAN, Timothy, 1989, Salman Rushdie & the Third World. Myths of the Nation, Londres: The Macmillan Press.

 

FERNANDES, Moisés da Silva, 2008, “O percurso chinês de Viriato da Cruz, 1958-1973”, in  ROCHA, Edmundo, SOARES, Francisco, MOISÉS, Fernandes, (Coord.),  Angola. Viriato da Cruz. O homem e o mito, Lisboa/Luanda: Prefácio e Chá de Caxinde: 255-342.

 

MABEKO-TALI, Jean-Michel, 2018 [2001], Guerrilhas e lutas sociais. O MPLA  perante si próprio (1960-1977). Ensaio de História Política, Lisboa:  Mercado de Letras Editores.

 

PACHECO, Carlos, 1997, MPLA – Um nascimento polémico, Lisboa: Editorial Veja.

 

ROCHA, Edmundo, 2008, “O itinerário político de Viriato da Cruz (até à crise no MPLA de 1963~64), in ROCHA, Edmundo, Soares, Francisco, MOISÉS, Fernandes, (Coord.), 2008, Angola. Viriato da Cruz. O homem e o mito, Lisboa/Luanda: Prefácio e Chá de Caxinde: 109-184.

 

SOARES, Francisco, 2008, “No cruzar dos caminhos: A pesquisa poética de Viriato da Cruz”, in ROCHA, Edmundo, SOARES, Francisco, MOISÉS, Fernandes, (Coord.), 2008, Angola. Viriato da Cruz. O homem e o mito, Lisboa/Luanda: Prefácio e Chá de Caxinde: 71-106.

 

VENÂNCIO, José Carlos, 1992, Literatura versus sociedade. Uma visão antropológica do destino angolano, Lisboa: Editorial Vega.


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